quarta-feira, 5 de novembro de 2014
O escritor e as duas mulheres...
Em meio a ainda tênue luz do amanhecer que entrava pela janela, ele via sua própria imagem refletida no espelho. Hoje, parecia que cada fio de cabelo branco lembrava uma história vivida, assim como cada ruga profundamente esculpida em seu rosto refletia uma emoção sentida. Aquela tinha sido uma noite difícil. O sono estivera leve, os pensamentos voaram distantes e, no peito, um estranho aperto.
Dormira, como sempre fez, ao lado daquela mulher que o acompanhara ao longo da vida e que lhe dera os dois filhos. Estes filhos, já com suas vidas aprumadas e com suas próprias histórias já sendo traçadas longe dos olhos paternos. Foi até a janela de onde estava acostumado a observar as ondas do mar que, insistentemente a cada novo dia, vinham lhe cumprimentar.
Por vezes ele nem queria, mas ali estavam elas, se mostrando, se impondo sobre a areia branca, fazendo o seu ruído característico. Será que, pelo menos hoje, elas não poderiam silenciar? Ele precisava colocar os pensamentos em ordem, as idéias em linha, arrumadas, enfileiradas, para que depois as pudesse repensar, uma a uma.
Estranho, aquela manhã não parecia ser igual a tantas e tantas outras já vivenciadas, aproveitadas, amaldiçoadas. Os olhos vermelhos, conseqüência da noite mal dormida eram uma evidência de que algo não ía bem.
Aproximou-se da velha máquina de escrever sobre a escrivaninha repleta de folhas em branco, algumas parcialmente escritas e ainda outras amassadas, rasgadas e rabiscadas.
Sim, fora dalí, em meio ao constante amontoado de papéis em sua mais ordenada desordem onde haviam sido gestados e expulsos para o mundo todos os seus livros.
Seus livros ao longo de infindáveis anos foram como arautos, mensageiros, que anunciavam em alto e bom tom de tinta preta sobre as páginas brancas, as suas idéias, suas crenças, suas falhas, suas descrenças e até mesmo suas esperanças. Em épocas de guerra, seus livros haviam servido tanto de lenitivo para os soldados nas trincheiras, como fábrica de idéias e argumentos aos líderes do país, únicos a quem as batalhas travadas e o sangue derramado de seus compatriotas serviam para alguma coisa, mesmo que apenas para mostrar poder e força.
Em outras épocas, seus romances embalaram os sonhos de amor e as vidas de toda uma geração de enamorados e apaixonados daquelas terras.
Em períodos de depressão, de crises econômicas, o povo arrancava forças para a penosa sobrevivência nas palavras retiradas das páginas de suas comédias e histórias jocosas.
Sem falsa modéstia, os seus contos, dramas, comédias e artigos políticos impregnados naqueles livros haviam ajudado a construir a mente daquele povo e o enchido de força pessoal, moral e cívica. Por que então, ainda assim havia no ar aquela estranha sensação que a vida não havia valido totalmente a pena ter sido vivida?
O motivo não estava lá fora, nem no mundo próximo, nem no além mar, mas sim dentro de seus próprios domínios: sua casa e principalmente sua mente.
Havia algo que ele e apenas ele, sabia, conhecia e não dividira com ninguém até a data de hoje. O seu coração estivera dividido entre duas mulheres a vida toda, a miserável vida inteira! Desde que se conhecia por gente, as duas estiveram alí, na vizinhança, na mesma rua. Entraram na escola juntos, os três! Aprenderam as primeiras letras na mesma sala de aula. Nos finais de semana, os dias de brincadeiras na rua de terra com as outras crianças terminavam ao lado delas, sentados à sombra de uma árvore, ou na beira do rio contando histórias e rindo muito, de tudo. Os primeiros beijos dos três foram compartilhados, porém sem que uma soubesse da experiência vivida por ele com a outra. Tudo acontecia em um processo natural, sem maldade ou malícia, em um contínuo ato de amadurecimento. Assim, a infância passou, veio a adolescência e a juventude. Aquele trio ria, convivia, passeava e passava a vida partilhando tudo como verdadeiros cumplices. Compartilhavam experiências, carinhos, carícias, ora formando um casal, ora outro.
Com o tempo, ele percebia que as duas estavam crescendo, tomavam formas diferentes, criavam curvas insinuantes, formas de mulher! Como eram bonitas! Aliás, estavam ficando lindas!
A medida que seus olhos sentiam a necessidade de admirar a ambas, seu coração foi se apaixonando, e o pior: pelas duas! Ingrato coração! Indeciso coração!
A dúvida e a paixão estavam presentes e juntas! Ele jamais havia conseguido se decidir, se definir, escolher entre a bela ruiva e a esplendorosa loira que dividiam com ele as salas de aula, os concertos de piano, os jantares, as festas e os bailes. Em uma valsa ele percorria o salão com uma nos braços e na música seguinte era com a outra que ele flutuava.
Os anos foram passando, a vida andava a passos largos e, um dia, ele não sabe porque, decidira pedir a mão da bela ruiva em casamento.
No dia, se sentira resoluto, com toda a certeza deste mundo. Malvado mundo! A medida que o tempo passava, vieram os filhos, um após o outro.
A vida doméstica era boa, mas sempre que a amiga loira passava pela rua, o seu olhar insistia em se desviar para conferir aqueles passos, para ver aqueles cabelos, aqueles quadris e observar a sua bela silhueta. Quando encontrava a amiga nas ruas, no armazem ou na praça, as conversas eram muito animadas. Riam de tudo, os olhares insistiam em se encontrar e as bocas não deixavam de se encarar de maneira quase explícita.
Como a vila era pequena, todas as portas, janelas, ruas e vielas tinham olhos, ouvidos e bocas. Muitas bocas! Então, ele se recolhia para junto da máquina de escrever e dava vazão aos sentimentos que já não podia externar pessoalmente àquela criatura tão querida, tão amada. Quantos romances saíram dali, em situações como esta. Eram vários. Eram muitos. E assim o tempo passava, as marés subiam, baixavam, os dias eram substituidos pelas noites e a vida seguia o seu ritmo, um penoso ritmo.
A idéia de, ao mesmo tempo dividir a sua vida em duas, mesmo que fosse só no seu íntimo, o angustiava, o perturbava. Abriu os olhos e se viu novamente na frente do espelho. Agora, as lágrimas já lhe molhavam a face e as pernas insistiam em se dobrar até o deixar de joelhos, como quem pede perdão pelas faltas, pelos pecados e pelos sacrilégios cometidos durante a existência. Num instante, seus olhos parecem querer saltar das órbitas e um grito sufocado acompanha a forte e aguda dor que irrompe no peito. Era como se o seu indeciso coração finalmente tivesse resolvido tomar alguma decisão; a decisão de pular para fora do peito. Mas, precisava doer tanto? Era quase insuportável! A visão começa a ficar turva e o raciocínio começa a ficar lerdo, fraco, impreciso. Ele sente que as forças o estão abandonando, deixando-o indefeso diante da própria sorte e da própria morte. Sim, ele estava sentindo a presença daquela que só ouvira falar ou só citara em seus textos: a morte!
Tentando chamar por alguém, a voz lhe falta, falha, some, o abandona. Agora, já se vê deitado no chão totalmente entregue e com o olhar fixo no teto. Em instantes, a visão antes turva, se apaga por completo e ele só sente a escuridão. Estranha e fria escuridão que agora o abraça como se fosse uma mortalha. Mas, por algum motivo a dor desaparecera, e isto era bom, muito bom. Aos poucos, sua visão clareia novamente e ele consegue ver aquele corpo de homem, deitado, em repouso no chão. Mas como? Era ele que jazia no chão da sala então já invadida pelos raios de sol da manhã. No mesmo instante, a verdade se descortinou: tinha sido apanhado pela morte, estava indo para uma outra vida, estava a espera de outra sorte.
Pouco a pouco, viu que as pessoas em pânico corriam e se aproximaram de seu corpo, lavando-o com copiosas lágrimas. Ele, porém, estranhamente se sentia bem, aliás muito bem. Passada uma hora, a sala já estava repleta de gente. Amigos, conhecidos, e ali, juntas, lado a lado, os dois amores de sua vida. Para sua alegria, neste instante as duas choravam juntas, abraçadas. Era uma estranha alegria. Começava a perceber que havia sido necessária a sua morte para unir em vida, as duas criaturas amadas. Finalmente, após uma vida inteira ele estava alí, junto das duas mulheres de sua existência terrena em perfeita harmonia, em completa união.
O estranho é que agora, e apenas agora, ele podia estar ao lado de quem quisesse, na hora que bem entendesse. Podia admirar aquelas mulheres que foram a sua vida e que fizeram a sua vida ter valido verdadeiramente a pena ter sido vivida. Ele estava aliviado, se sentia leve. Sua alma estava em paz.
Após quase não terem mais lágrimas para derramar, as duas amadas criaturas se aproximaram da velha máquina de escrever, na esperança de achar ali algo que mantivesse por mais um tempo a sensação de tê-lo por perto. Era como se estivessem a procura de um epitáfio, de uma herança, de um testamento. Eis que, entre uma mistura de sorrisos e choro, elas encontraram o que procuravam. Ali, incrustrada na antiga máquina, estava uma folha datilografada pela metade. Ao mesmo tempo em que um calafrio descia por suas espinhas, dois sorrisos se abriram ao lerem as curtas linhas construidas em tipos pretos e firmemente marcados no papel.
Lá, dizia:
O escritor e as duas mulheres
O velho escritor levara uma vida dividida
Amara muito
Muito em intensidade
Muito em quantidade
Em seu coração, duas metades
Em sua vida, dois caminhos
Em seu pensamento, duas mulheres
Convivia com uma
Vivia para a outra
Casara com uma
Amara também a outra
Nas manhãs da mente, lia o jornal com uma
Nas tardes da vida, declarava-se para a outra
No resto do dia, escrevia inspirado nas musas
Já tarde da noite, quando a luz se apagava
Sua imaginação brilhava
Sua saudade acendia
Sua alma ascendia...
Com uma, tinha filhos
Com a outra, tinha sonhos
Que a outra se tornasse a uma
Que suas almas se tornassem única
Que suas histórias se tornassem una
Que suas almas voassem livres
No frescor da brisa
Sobre as águas calmas
No brilhar da lua
Pela madrugada...
Um dia
O livro fechou
A cortina desceu
A morte chegou
Enquanto outros choravam
Seu espírito feliz, gargalhou
Estava livre para ir
Estava seguro para decidir
Qual o caminho a seguir
Ao lado de quem, descansar...
Era a indicação clara, precisa e escrita que aquela união, que não era apenas carnal, que aquele amor a três, permaneceria vivo através dos tempos, neste e no outro mundo. Quem conviveu, viu! Quem viver, verá! Quem morrer, comprovará!
27/01/2009
17h 01min
http://www.recantodasletras.com.br/contos/1482014
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